Artigo do delegado caçadorense Marcelo Colaço*
Publicado originalmente no site Empório do Direito.
Essas indagações me foram feitas por algumas testemunhas, vítimas e até conduzidos que interroguei durante as minhas primeiras utilizações do novíssimo sistema audiovisual[1], implementado de forma inovadora pela Polícia Civil de Santa Catarina, durante a lavratura dos Autos de Prisão em Flagrante que presidi no final do ano de 2016 e começo de 2017.
Entretanto, não só os participantes leigos no que concerne ao direito, e que foram diretamente envolvidos nos procedimentos, externaram dúvidas. Mas, os próprios operadores desta fase inicial da persecução, dentre eles colegas delegados, escrivães e advogados criminalistas que acompanhavam seus clientes, demonstraram desconfianças e certo receio em relação à nova ferramenta, especialmente no tocante à sua adequação legal, tema que almejamos discutir, sem, por conseguinte, ter a pretensão de exauri-lo.
Todavia, para adentramos ao tópico, é fundamental recordarmos que o principal instrumento de materialização investigativa, que é exclusiva das polícias judiciárias[2], o Inquérito Policial, possui características há muito solidificadas pela doutrina[3] e jurisprudência pátrias.
De forma praticamente unânime, são listadas pela doutrina as seguintes características do Inquérito Policial: oficiosidade, oficialidade, sigilosidade, indisponibilidade e, por fim, ser ele procedimento escrito.[4]
Aqui, cabe consignar que não entraremos à discussão de todas as características supramencionadas, pois não se constituem foco deste debate e, não obstante, elas se encontram bem solidificadas e com ínfimas divergências nos mais variados manuais de processo penal. O que se objetiva, em verdade, é perquirir sobre a adequação da característica que é pertinente ao nosso estudo, ou seja, a forma escrita, a qual está intimamente ligada à inovadora e inteligente medida de utilização do sistema audiovisual, e se encontra registrada no art. 9º da nossa principal lei adjetiva penal, ex vi:
Art. 9o Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.[5]
Ao efetuar-se uma análise, mesmo que perfunctória do artigo, se observa pertencer ele a um tempo pretérito. Editado originariamente no codex publicado em 13.10.1941, não se coaduna com os tempos atuais. Para tanto, resta observar que há muito não se utilizam mais as famigeradas máquinas de escrever e, tampouco, textos manuscritos no bojo dos procedimentos policiais, os quais apenas são lembrados nos nostálgicos contos de quem no passado as utilizou.
Resta assim evidente que, com a célere evolução tecnológica de nossa sociedade, não teria como tal princípio e, por arrasto, o mencionado artigo supra, se manterem assentes e intactos na elaboração dos procedimentos policiais. Desta feita, observando a inadequação do dispositivo com a realidade prática, começaram a surgiu, na esfera doutrinária, debates e posicionamentos favoráveis à utilização de uma nova e atual tecnologia que fosse condizente com nossa realidade:
Sendo procedimento administrativo destinado a fornecer elementos ao titular da ação penal, o inquérito, por exigência legal, deve ser escrito, prescrevendo o art. 9° do CPP que “todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”. Os
atos produzidos oralmente serão reduzidos a termo. Nada impede que outras formas de documentação sejam utilizadas, de maneira a imprimir maior fidelidade ao ato, funcionando como ferramenta complementar à forma documental, como a gravação de som e/ou imagem na oitiva dos suspeitos, testemunhas e ofendidos na fase
preliminar (art. 405, § 1°, CPP).[6]
Observa-se, neste ponto, a inserção da primeira base jurídico-doutrinária para a utilização do sistema audiovisual, qual seja, a interpretação literal e extensiva conforme consignada no art. 3º do Código de Processo Penal[7], a qual permite o emprego à fase policial, da metodologia aplicada à fase judicial da persecução, com supedâneo na norma constante no art. 405, § 1º da lei adjetiva penal:
Art. 405. Do ocorrido em audiência será lavrado termo em livro próprio, assinado pelo juiz e pelas partes, contendo breve resumo dos fatos relevantes nela ocorridos.
§ 1º Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações.[8]
Não obstante à utilização da interpretação literal do art. 405 § 1º do Código de Processo Penal, como elemento de fundamentação, cita-se no âmbito doutrinário a chamada interpretação progressiva, a qual, em suma, se propõe a adaptar a lei às novas contingências, à evolução e ao progresso, objetivando, assim, superar a arcaica forma procedimental até então utilizada no âmbito procedimental policial, como expõe Renato Brasileiro de Lima:
De acordo com o art. 9° do CPP, todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade. Diante do teor desse dispositivo, discute-se, na doutrina, acerca da possibilidade de se utilizar de recursos de gravação audiovisual no curso das investigações policiais.
A nosso juízo, apesar de o CPP não fazer menção à gravação audiovisual de diligências realizadas no curso do inquérito policial, deve-se atentar para a data em que o referido Codex entrou em vigor (1º de janeiro de 1942). Destarte, seja por força de uma interpretação progressiva, seja por conta de uma aplicação subsidiária do art. 405, § 1º, do CPP, há de se admitir a utilização desses novos meios tecnológicos no curso do inquérito. Portanto, sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, do indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive
audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações.[9]
Destarte, com alicerce nos fundamentos supracitados, evidenciam-se ausentes quaisquer vícios ou irregularidades na utilização do sistema audiovisual durante a fase pré-processual da persecução penal, pois este se encontra claramente sedimentado e alicerçado tanto na lei quanto na doutrina contemporânea, as quais lhe fornecem substrato necessário para sua aplicação.
Outrossim, há de se mencionar que, sem dúvidas, a utilização do referido sistema permitirá alcançar os objetivos almejados, quais sejam: a celeridade do procedimento e a fidelidade das informações colhidas, eis que capaz de captar e transmitir o comportamento, o ânimo, os gestos peculiares e até a alteração da voz das partes envolvidas. Ou seja, será capaz de captar elementos aptos a evidenciar uma nova percepção sobre a condução dos procedimentos que irão, seguramente, auxiliar em muito a análise e, por consequente, influenciar favoravelmente as decisões judiciais, o que não era possível ser feito no modo tradicional, preteritamente utilizado.
Por derradeiro, há de se mencionar ser a implementação de tal sistema um enorme avanço à fase pré-processual, demonstrando a adequação da polícia judiciária ao contexto evolutivo da sociedade, objetivando cada vez mais tornar eficazes as ações por ela tomadas.
Notas e Referências:
[1] Sistema Audiovisual: consiste na captação, de som e imagem, dos depoimentos colhidos, durante a lavratura dos autos de prisão em flagrante. Fonte: http://www.policiacivil.sc.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11481:policia-civil-implementa-sistema-de-gravacao-audiovisual-para-a-lavratura-de-auto-de-prisao&catid=85:destaque&Itemid=131 (Acesso em 13.02.2017)
[2] BRASIL. Lei 12.830 de 20 de Junho de 2013. Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet – planalto. gov.br. (Art. 1o Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. § 1o Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais).
[3] TAVORA, Nestor; ALENCAR Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8ª Ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2013. p. 103.
[4] ZANOTTI, Bruno Taufner; SANTOS, Cleopas Isaías. Delegado de Polícia em Ação. 3ª Ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2015. Capítulo III.
[5] BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de Outubro de 1941. Código de Processo Penal. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet – planalto. gov.br.
[6] TAVORA, Nestor; ALENCAR Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8ª Ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2013. p. 103.
[7] BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de Outubro de 1941. Código de Processo Penal. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet – planalto. gov.br. (Art. 3o A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito).
[8] BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de Outubro de 1941. Código de Processo Penal. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet – planalto. gov.br.
[9] LIMA. Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 3ª Ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2015. p.116
*Marcelo Ricardo Colaço é Bacharel em Direito. Especialista em Ciências Criminais. Delegado de Polícia do estado de Santa Catarina. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade do Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp- campus Caçador).