No final da tarde de 29 de setembro de 2006, o tenente-coronel da Aeronáutica Afonso de Deus havia acabado de chegar a seu apartamento na Asa Sul, em Brasília, quando recebeu um telefonema com ordens para que arrumasse as malas para uma missão especial. Com a ajuda da mulher, escolheu algumas roupas e pegou uma lanterna.
Por volta das 17h daquele dia, o comando da Aeronáutica havia recebido o alerta de que um Boeing 737 da Gol, que ia de Manaus para o Rio de Janeiro, havia desaparecido enquanto sobrevoava a Amazônia, entre Pará e Mato Grosso. “Nessas horas você se prepara para o pior”, diz Afonso. O pior tinha mesmo acontecido. O Boeing havia se chocado em pleno voo contra um jato Legacy.
Afonso trabalhou no resgate dos corpos e na investigação das causas da tragédia. Foi também para o Canadá, onde participou da análise do material da caixa preta da aeronave. Ele esteve no centro da tragédia e registrou boa parte do que viu em vídeos e fotos, que permaneceram inéditos até hoje. “Não senti orgulho do que fiz, mas ficou a sensação de dever cumprido”, diz Afonso.
Em 2006, depois de 58 dias longe da família, 26 deles na selva amazônica, o tenente-coronel voltou para casa 16 kg mais magro e com o registro precioso dos bastidores de uma das maiores tragédias da história do país.
Veja minuto a minuto o que levou à colisão entre o Legacy e o Boeing
13h50: Em São José dos Campos, a Embraer, fabricante do Legacy, envia ao centro de controle aéreo de Brasília o plano de voo da aeronave. O plano previa um voo feito em três altitudes de cruzeiro: 37.000, 36.000 e 38.000 pés
14h33: A Torre de São José dos Campos pede a Brasília a autorização para o voo até o aeroporto Eduardo Gomes, em Manaus, informando apenas a altitude dos 37.000 pés. O controlador de Brasília responde “Okay”
14h41: Torre de São José autoriza que os pilotos do Legacy iniciem o taxiamento para o voo a 37.000 pés de altitude. Em depoimento, o controlador de São José dos Campos disse que é comum informar ao piloto apenas a sua primeira altitude do voo. A partir disso, disse o controlador, o piloto deve-se orientar pelo plano de voo que tem em mãos. A norma, no entanto, diz que o controlador deve informar todas as altitudes previstas, da decolagem até o pouso
14h42: Os pilotos do Legacy não se atentam que, segundo o plano de voo, deveriam variar a altitude ao longo da viagem, diferente do que parece dar a entender o controlador. Eles confirmam a informação de voo no nível 37.000 pés de altitude
14h51: O Legacy decola de São José dos Campos
15h19: Em Manaus, os pilotos do Gol pedem autorização para voar no nível de 37.000 pés. Originalmente, eles voariam a 41.000 pés. A mudança, algo corriqueiro no setor aéreo, é autorizada pelos controladores de voo
15h35: O Boeing 737 da Gol decola de Manaus, com destino ao Rio de Janeiro, com escala em Brasília
15h41: Pilotos demonstram desconhecimento da máquina que pilotavam. Durante o voo, tentam entender como ler o sistema de gerenciamento de voo, que informa dados como desempenho de uso de combustível
15h55: Ao passar por Brasília, o Legacy, que voava a 37.000 pés, deveria alterar sua altitude para 36.000 pés, segundo o plano de voo que estava com os pilotos. A tela do radar em Brasília passa a mostrar que a altitude do Legacy está diferente da prevista para aquele trecho. Mas o controlador Jomarcelo dos Santos não percebe a falha.
16h01: O transporder do Legacy é inadvertidamente desligado. Com isso, o radar de Brasília perde a informação confiável sobre a altitude da aeronave. Além disso, o Legacy para de alertar sobre sua presença a aeronaves que estejam em rota de colisão
16h17: Troca de turno altera os controladores que observavam o Legacy em Brasília. O controlador Jomarcelo informa erroneamente a seu substituto, Lucivando de Alencar, que o Legacy está na altitude prevista no plano de voo: 36.000 pés
16h26: Lucivando tenta contatar o Legacy sem sucesso. Seriam cinco tentativas ao longo dos próximos 20 minutos
16h30: Legacy entra em um “buraco negro” dos radares de Brasília e desaparece das telas dos controladores
16h33: Legacy passa por um ponto a partir do qual deveria começar a voar a 38.000 pés até Manaus. Mas mais uma vez, a aeronave não altera sua altitude e se mantém a 37.000 pés
16h48: Após quase uma hora sem tentar falar com os controladores, o Legacy tenta chamar os controladores de Brasília pelo rádio. O copiloto, Jan Paul Paladino, não consegue contatar os controladores. Segundo a investigação da Aeronáutica, o tripulante não estava usando a frequência disponível para a área. Pelas normas internacionais, nesse caso o Legacy deveria ativar um código de perda de comunicação no transponder. Se tivessem feito isso, os pilotos perceberiam que o transponder estava desligado
6h56: O copiloto segue tentando fazer contato com Brasília
16h56: Hora da colisão. Pilotos sentem um impacto, mas não veem no que atingiram.
16h59: Os pilotos percebem que o TCAS, sistema de anticolisão do transponder, está desligado. “Cara, você está com o TCAS Iigado?”, pergunta o copiloto. “É, o TCAS está desligado”. O sistema alertaria a aproximação perigosa com outra aeronave a tempo de desviar
16h59: O transponder é religado, após praticamente uma hora
17h21: “Nós acertamos algo. Nós acertamos outro avião”, diz o piloto Joseph Lepore. “Eu não vi, eu estava tentando contatar”.
17h22: Com uma avaria na asa esquerda, Paladino assume o controle do Legacy e pousa com segurança em uma pista de pouso da Aeronáutica, na serra do Cachimbo, no sul do Pará