Artigo publicado originalmente no Empório do Direito
Voltando-se os olhos às recentes e voláteis decisões proferidas pelos tribunais superiores nacionais, não há como não se vislumbrar uma fase de insegurança jurídica pairando sobre as relações humanas travadas em nossa sociedade. Tal constatação se torna ululante quando se observa que num pequeno interregno os fundamentos legais utilizados pelos julgadores são por eles mesmos rechaçados e substituídos por outros que assim também poderão o ser com a mesma velocidade.
A mudança de paradigmas no âmbito jurídico é natural e está, sem dúvidas, ligada à própria evolução e aprimoramento das decisões que devem acompanhar o desenvolvimento social para que resultem eficazes. Entretanto, o que se observa é volatilidade exacerbada e descompromissada quanto às bases hermenêuticas utilizadas nas decisões, gerando, por conseguinte, insegurança aos jurisdicionados.
A relativização e não solidificação de posicionamentos e ideais com maior profundidade e concretude está presente no mundo contemporâneo, também chamado de pós-moderno, nas mais variadas ações do homem, fato que redundou no fundamento teórico da expressão cunhada pelo professor e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o da “Modernidade Líquida”.
Bauman, em suma, examina a mudança cultural da sociedade atual com base na globalização e na enormidade de informações que recebemos diariamente, as quais são facilmente esquecidas, pois substituídas (basta olhar a enxurrada de informações diárias e desnecessárias em nossos smartphones). Afirma o sociólogo que não há assim tempo hábil para ponderações e reflexões. Sua tese denominada também de era líquido-moderna, afirma que os indivíduos passaram de produtores a consumidores de informação com uma cultura de grupos sem reflexão e aprofundamentos teóricos, com se pode depreender de sua obra intitulada A Cultura no Mundo Líquido Moderno:
Uso aqui a expressão “modernidade líquida” para denominar o formato atual da condição moderna, descrita por outros autores como “pós-modernidade”, “modernidade tardia”, “segunda modernidade” ou “hipermodernidade”. O que torna “líquida” a modernidade, e assim justifica a escolha do nome, é sua “modernização” compulsiva e obsessiva, capaz de impulsionar e intensificar a si mesma, em consequência do que, como ocorre com os líquidos, nenhuma das formas consecutivas de vida social é capaz de manter seu aspecto por muito tempo. “Dissolver tudo que é sólido” tem sido a característica inata e definidora da forma de vida moderna desde o princípio; mas hoje, ao contrário de ontem, as formas dissolvidas não devem ser substituídas (e não o são) por outras formas sólidas – consideradas “aperfeiçoadas”, no sentido de serem até mais sólidas e “permanentes” que as anteriores, e portanto até mais resistentes à liquefação. No lugar de formas derretidas, e portanto inconstantes, urgem outras, não menos – se não mais – suscetíveis ao derretimento, e portanto também inconstantes. [1]
No âmbito jurídico, como claro exemplo da fluidez da hermenêutica, podemos citar as recentes decisões proferidas no Superior Tribunal de Justiça nacional no concernente ao crime de Desacato, previsto no Art. 331 do Código Penal[2]. Em dezembro do ano passado, a 5ª Turma do tribunal, por meio do julgamento do REsp 1640084/SP [3], afirmou que o crime de Desacato não mais subsiste em nosso ordenamento jurídico, utilizando como ratio de sua decisão vários elementos extraídos do ordenamento pátrio e das convenções pelo Brasil ratificadas, dentre elas citou desigualdade entre funcionários públicos e particulares, o fato da criminalização do desacato estar na contramão do humanismo, violar a liberdade de expressão e, por fim, citou o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica como fundamento central.
Entretanto, desconstruindo a decisão supramencionada, em 24 de maio do corrente ano, ou seja, em menos de 06 meses, a 3ª Seção do tribunal, a qual possui em determinados processos a função de rever as decisões proferidas pela 5º e 6º turmas, no julgamento do HC 379.269/MS [4], para onde remeto o leitor, aniquilando totalmente os argumentos anteriormente utilizados, decide que desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela continua a ser crime, conforme previsto no art. 331 do Código Penal.
A situação aqui trazida a enfrentamento não é quanto aos fundamentos utilizados para o caso concreto ou a salutar e necessária adequação e evolução para o aprimoramento das decisões judiciais, como já citado, mas a forma como os fundamentos que há pouco eram extremamente fundamentais para a humanização da sociedade agora são rechaçadas como se não tivessem relevância, ou seja, são tratadas como somenos.
Examinando a situação sob a ótica cunhada por Bauman, não há como não pairar sob nossas cabeças, como a Espada de Dâmocles, a indagação sobre a fluidez e liquidez das decisões prolatadas nos mais altos graus da esfera judicial. Os fatos inegavelmente revelam a ocorrência exacerbada do descomprometimento e flagrante liquidez nas bases axiológicas e legais utilizadas em importantes decisões, as quais afetam de sobremaneira nosso cotidiano e, consequentemente, geram insegurança nas relações jurídicas. O momento é inegavelmente preocupante, requer maior reflexão e cuidado para que não nos tornemos alienados e aceitemos decisões voláteis e perigosas à sociedade que podem nos causar danos deletérios.
Notas e Referências:
[1] BAUMAN, Zygmunt. A Cultura no Mundo Líquido Moderno. 1ª edição. Ed. ZAHAR em associação com o National Audiovisual Institute, NInA, Polônia. 2013. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. p.16
[2] Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
[3] STJ. 5ª Turma. REsp 1640084/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 15/12/2016.
[4] STJ. 3ª Seção. HC 379.269/MS, Rel. para acórdão Min. Saldanha Palheiro, julgado em 24.05.2017.
* Marcelo Ricardo Colaço é Bacharel em Direito. Especialista em Ciências Criminais. Delegado de Polícia do estado de Santa Catarina. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade do Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp- campus Caçador).