Carlos Moisés já não esconde dos assessores próximos que semanalmente vai a Biguaçu “conversar” com Luiz Henrique.
Normalmente leva presentes. Alguns que os guias pedem e outros que leva de livre e espontânea vontade.
-Poire… Nunca tinha ouvido falar nessa bebida de pêra suíça e que custou o olho da cara – disse Moisés ao entregar o embrulho para o negro na chegada ao centro.
– Os guias disseram que é a bebida preferida de um tal Ulysses – respondeu Pacácio. – Não tenho a menor ideia quem seja.
O negro estava vestido de branco dos pés a cabeça. Sentou-se ao lado das imagens de santo e começou a fumar um charuto. Moisés percebeu que era um Monte Cristo, da caixa que o presenteara há algumas semanas.
Menos de um minuto depois já falava com a voz característica do ex-governador Luiz Henrique:
– Onde foi a festa junina esse final de semana?
Moisés estava envergonhado. O conselheiro ainda não esquecera a sua ida à festa junina em um hotel em Gaspar.
Mesmo em tom de brincadeira, continuava cobrando.
– Não teve festa. Já me desculpei com a população. O problema agora é serio. Os deputados querem me levar depor na CPI dos respiradores.
– Quem não deve não teme – disse Luiz Henrique.
O negro deu mais uma baforada no charuto e teve um acesso de tosse. Quando se acalmou Luiz Henrique seguiu falando:
– Sei que o senhor não é muito chegado em literatura, mas com essa sua cara de coroinha imagino que já tenha lido a Bíblia. Num dos evangelhos, que não lembro o qual, Cristo fala sobre os escândalos. Ele diz que eles sempre existirão, mas ai daquele por quem o escândalo vier. Diz mais: se a tua mão direita te escandaliza, corta fora. É melhor entrar no céu maneta, que ir para o inferno.
-Eu até leio a Bíblia, mas não compreendo. – disse Moisés.
Luiz Henrique começou a falar cada vez mais alto, num tom de voz que demonstrava irritação:
-Em 2004, a turma da Segurança Pública do meu Governo, meteu-se numa confusão em Joinville. Nada que a maioria dos políticos já não fez. Foram todos fazer uma festa na zona. Lembra desse caso? O escândalo da Marlene Rica. A imprensa e a turma do Amin tentaram me envolver. Mas eu não estava lá, por isso não temi. Simplesmente, mandei embora quem estava. Inclusive o comandante da Polícia Militar.
– Sim, lembro desse fato. – falou Moisés.
– Então, – respondeu Luiz Henrique – se o senhor não deve, vai na CPI, conta a verdade e não tenha dó de ninguém. A CPI é política e o seu problema nesse momento é político. Então vai lá, não esconda nada que sabe e coloque a culpa em quem realmente deve. Simples assim.
– Se o senhor acha que devo ir, eu vou – falou Moisés, sem demonstrar muita segurança na voz.
Nesse momento, o negro abriu uma garrafa de Velho Barreiro que estava num canto da mesa e tomou um longo gole no bico.
Estalou os lábios e voltou a falar com a voz de Luiz Henrique, cada vez num tom mais alto:
– O senhor tem um funcionário no Porto de São Francisco que ganha mais de 60 paus por mês. Para variar, seu companheiro de farda. Você disse na campanha, aquela campanha que você nem precisou fazer, que tudo seria diferente, de mim, do Eduardo, do Colombo, do Amin, afinal do que todos os outros. Está sendo diferente mesmo, porque no meu Governo nunca teve um salário desses.
– Esse foi um caso pontual. – retrucou Moisés – Já vou afastar do cargo.
Luiz Henrique estava irritado e era tão visível que o negro deu um soco na mesa.
– Sem essa conversa mole de caso pontual! Todas as merdas do seu Governo são casos pontuais. Tem muito mais gente ganhando altos salários no seu Governo. O senhor nem imagina, mas acompanho o seu Diário Oficial.
Semanalmente, Luiz Henrique recebe informações do Diário Oficial. Quem as leva é Antonio Peres, jornalista que, enquanto viveu, foi muito ligado ao ex-deputado Mauro Mariani.
O negro tomou um gole de cachaça e deu uma baforada no charuto. Luiz Henrique voltou a falar com mais calma:
– O Tonho ajuda a me manter informado sobre suas nomeações. Quando não está andando com o Bob Marley de um lado para o outro, está lendo o Diário Oficial.
Finalmente, Moisés conseguiu recuperar a fala. Sua voz estava trêmula. Ficou assustado com o rompante do ex-governador e a forma como o negro lhe encarava.
– Vou consertar esses erros, doutor Luiz. O senhor pode contar comigo. Mas só peço que não deixe de me atender. Seus conselhos são importantes. Aquela semana que eu não vim, porque perdi a hora, foi uma semana toda errada.
O vento que entrava por uma fresta da janela entreaberta quase apagava a chama da vela acesa diante da imagem de São Jorge. O susto inicial, aliado ao cheiro da cera derretida e do charuto, embrulhavam o estômago de Carlos Moisés.
Luiz Henrique passou a falar com voz mais calma:
– Como está seu relacionamento com os deputados?
– Está melhorando. Estamos pagando as emendas aos municípios e o secretário Amandio está conversando com todos, independente da bancada. Espero que melhore. O Julio Garcia deu uma entrevista para o Upiara Boschi e disse que não vê clima para impeachment. Vindo dele essa afirmação, é uma coisa importante.
– Vou lhe ensinar algo que vai ser muito importante para o senhor sobreviver no mundo político – disse Luiz Henrique, com uma voz firme, mas sem aquela irritação do início da sessão. – A vida, e até a morte, são feitas de gestos. Eu mesmo estou lhe fazendo um gesto depois de morto. O senhor precisa praticar gestos para os deputados, para a imprensa, para os segmentos da sociedade. Enfim, o senhor não pode viver fechado, isolado do mundo, com medo de tudo. Saia da redoma ou no final do seu Governo, se o senhor chegar lá, será lembrado como o pior governador da história de Santa Catarina.
Moisés não estava mais trêmulo e com muito jeito pediu que Luiz Henrique fosse mais claro:
– Peço que o senhor não se irrite novamente, mas preciso que me dê exemplos. Eu não tenho essa manha da política.
– Esses dias o Tebaldi me contou – falou Luiz Henrique – que um deputado do PSDB queria ser seu secretário da Saúde. Um homem sério, honrado e competente. O senhor nem deu bola. Poderia ter feito um gesto. Agradaria o PSDB e, consequentemente, o MDB, porque abriria uma vaga na Assembleia para os emedebistas.
Marco Tebaldi, que sucedeu Luiz Henrique na Prefeitura de Joinville e Jacó Anderle, secretário de Educação no seu primeiro Governo, são quem mantém Luiz Henrique informado sobre o que acontece com os tucanos em Santa Catarina.
– Tenho conversado bastante com o Tebaldi – falou Luiz Henrique. – Se eu fosse de guardar rancores, o ignoraria pelo que me fez. Eu o transformei em prefeito de Joinville e nas duas eleições do Udo, quando precisei dele, me virou as costas e saiu candidato. Em 2012, fez pouco mais de 18%. Votos suficientes para o Udo ter vencido no primeiro turno. Em 2016, pensei que tivesse aprendido a lição, mas foi candidato novamente e fez 13% dos votos. Novamente os votos que faltaram para o Udo vencer no primeiro turno. Mas não guardo mágoas. Minha vida nunca foi regida pelo retrovisor e não será agora na morte que vou mudar. Somos bons amigos. Ele nunca me disse, mas acho que foi influenciado por aquele jornalista gordo, com cara de índio, que o assessorava. Um dia desses vi o Charlton Heston e pensei: se ele soubesse que seu personagem, lindo, naquele filme épico deu o nome para um cara tão feio.
O negro voltou a fumar seu charuto e a beber cachaça. A fumaça tomou conta da pequena sala.
Moisés percebeu que Luiz Henrique falou sobre Marco Tebaldi e o assessor apenas para lhe dar a lição que a vida deve ser para frente e que não deve se apegar a acontecimentos passados.
– O senhor gosta de cinema? – perguntou Luiz Henrique.
– Na verdade, faz tempo que não vejo um filme, mas se o senhor tem alguma indicação eu vou ver com certeza – assegurou Moisés.
Se tem coisa que deixa Luiz Henrique contente é quando fala sobre filmes, livros, obras de arte, música, dança e vinhos.
Frequenta, como ouvinte, uma roda de conversa com Pablo Neruda, Jorge Amado, Jorge Luiz Borges e Gabriel Garcia Márquez.
Também gosta do Hemingway, mas essa turma não suporta o escritor americano.
Após Pacácio dar mais uma baforada no charuto, Luiz Henrique falou novamente:
– Assista a trilogia do Poderoso Chefão. No segundo filme, tem uma cena de uma conversa entre Michael Corleone e Frank Pentangeli. Ela é uma grande lição para quem está no poder.
Moisés olhava fixamente para o negro, como se estivesse vendo o seu conselheiro. Na sua cabeça passava um filme. Na verdade, nunca teve muita simpatia por Luiz Henrique. Nunca teve simpatia por políticos de um modo geral. Mas agora estava ali, diante de um “pai de santo”, dependendo dos conselhos de alguém que já morreu, para arrumar seu Governo. “E se tudo isso fosse charlatanismo desse negro?!”, pensou.
Quando percebeu Luiz Henrique estava falando novamente:
– Não lembro exatamente o que Maicon disse para o “Cinco Anjos”, mas foi mais ou menos assim. Aqui nesse gabinete aprendi grandes lições com meu pai, o Dom Corleone, e uma delas foi ‘mantenha seus amigos por perto e os seus inimigos mais perto ainda’. Óbvio que os deputados da oposição não são seus inimigos, mas use a analogia. Ao invés de se isolar e isolá-los, mantenha todo mundo por perto. O senhor vai ver como funciona.
– Obrigado, doutor Luiz – disse Moisés – vou colocar isso em prática. Sobre o apoio do MDB, o senhor tem algum conselho?
– Vale o conselho que o Dom passou ao Maicon Corleone também – respondeu Luiz Henrique, já falando num tom de voz muito baixo.
Moisés percebeu que era hora de terminar a sessão. Já estava acostumando. Na hora de voltar ao além, Luiz Henrique ia baixando o tom de voz, até sumir totalmente.
– Quero lhe agradecer…
Nem terminou a frase e percebeu que o negro maneava a cabeça para os lados, tossia e fungava. Luiz Henrique já estava longe.
NA FOTO, LUIZ HENRIQUE E MARCO TEBALDI. AMBOS JÁ FALECIDOS.
Por Frutuoso Oliveira