Ao efetuar a leitura da Lei nº 13.432, publicada em 11 de abril do corrente ano, não há como deixar de lembrar-se do famoso personagem dos contos de ficção da literatura britânica criado pelo médico e escritor Sir Arthur Conan Doyle[1], o detetive Sherlock Holmes. Entretanto, neste momento, separemos realidade e ficção, pois apenas aquela nos interessa ao debate a ser traçado neste ensaio, o qual adentrará, sem a intenção de exaurir o tema, à discussão de certas controvérsias sobre o novel diploma, em especial, no tocante à sua eficiência no âmbito da investigação criminal conduzida pela polícia judiciária.
Não obstante já existirem uma gama de instituições públicas com atribuição investigativa, Polícias, COAF, MP, CVM, dentre outras, resolve o Congresso, ao invés de pensar em soluções que fortaleçam os órgãos estatais na elucidação e busca de elementos informativos durante seus procedimentos investigatórios, criar uma nova figura investigativa privada, à qual tentou inclusive outorgar status de colaborador da justiça e dos órgãos de polícia judiciária, ao utilizar expressões técnicas que são usadas apenas aos agentes públicos, as quais acertadamente foram objeto de veto [2].
O novel diploma teve acertadamente seu artigo vestibular vetado, pois pretendia ser um regulamento geral da investigação privada, fato que poderia afastar qualquer outra maneira de se buscar, de forma legal e no âmbito privado, informações que não respeitassem tais diretrizes, configurando-se, consequentemente, em direcionamento na contratação compulsória de um detetive particular, caso se quisesse buscar alguma informação investigativa que não fosse realizada por agentes estatais.
Na sequência, em seu art. 2º, dispôs sobre a denominação e constituição da nova atividade de detetive particular, limitando sua atuação de forma apropriada ao não abarcar matérias de âmbito criminal, conferindo-lhe ainda requisitos e apontando os meios para sua execução, in verbis:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se detetive particular o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante.
§ 1º Consideram-se sinônimas, para efeito desta Lei, as expressões “detetive particular”, “detetive profissional”e outras que tenham ou venham a ter o mesmo objeto[3]. (grifo meu)
Entretanto, surpreendentemente, três artigos à frente, de forma anacrônica, limitou no art. 2º a matéria em não criminal, admitiu ao investigador particular a possibilidade de colaborar na investigação policial, criando uma figura análoga ao assistente de acusação da fase da ação penal, que seria uma espécie de assistente de investigação na fase policial, como segue:
Art. 5º O detetive particular pode colaborar com investigação policial em curso, desde que expressamente autorizado pelo contratante.
Parágrafo único. O aceite da colaboração ficará a critério do delegado de polícia, que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo [4] .
Neste ponto, além do anacronismo já citado, reside outro aspecto que causa certa temeridade, que é a manutenção da sigilosidade na condução do feito investigatório policial. Não se pode olvidar que a investigação policial, materializada por meio do inquérito, o qual, de forma inequívoca, trata de questões criminais, acaba na maioria das vezes adentrando a temas relacionados à intimidade das pessoas e a segurança da coletividade. Assim, justamente por tratar de fatos tão intimamente ligados aos direitos fundamentais do cidadão, nascem preocupações no concernente à participação do particular durante as investigações, pois, ao contrário dos agentes públicos que o conduzem, aos investigadores particulares não foram determinadas obrigações legais de velar pelos elementos informativos colhidos durante sua atuação e, tampouco, lhes foram listadas sanções criminais próprias, como possuem os agentes estatais.
Não bastasse a ausência de limites e sanções, a preocupação é reforçada inclusive quando se observa ter sido vetado o art. 3º, no qual se buscava a correta exigência de requisitos mínimos para exercer a atividade:
Art. 3º Para o exercício da profissão de detetive particular, exige-se dos interessados a comprovação dos seguintes requisitos:
I – capacidade civil e penal;
II – escolaridade de nível médio ou equivalente;
III – formação específica ou profissionalizante para o exercício da profissão;
IV – gozo dos direitos civis e políticos;
V – não possuir condenação penal.
§ 1º O curso de formação profissional de atividade de coleta de dados e informações de interesse privado, equivalente ao nível médio, terá o currículo estabelecido pelo Conselho Nacional de Educação e carga horária de, no mínimo, 600 (seiscentas) horas.
§ 2º O currículo a ser estabelecido na forma do § 1o deste artigo deverá incluir, entre outros, conhecimentos de Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Civil [5].
Há de se mencionar ainda a dispensável e contraproducente inserção feita pelo legislador no parágrafo único do art. 5º, quando cita a faculdade de a colaboração particular ser aceita pelo delegado de polícia, esquecendo-se, por óbvio, do poder discricionário da autoridade para a condução de seus feitos, o qual lhe confere o poder de negar diligências, conforme expresso no art. 14 do Código de Processo Penal:
Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade [6].
Destarte, analisando-se o novel diploma sob a ótica de quem conduz a investigação criminal, se observa claramente haver uma tentativa de mitigação dos princípios da oficialidade e sigilosidade, o que, por consequente, traria maiores dificuldades à autoridade policial na condução dos seus feitos, os quais devem ser conduzidos, em respeito aos envolvidos, com a cautela necessária.
Reforça-se ainda mais tal temeridade, o fato de não haver necessidade de qualquer qualificação e tampouco sanções específicas para a atuação do detetive particular, porque não podemos dispensar a hipótese de tal figura tentar ou até ingressar na persecução com o fim de causar tumultuo ou obter informações para fins diversos, o que causaria grande instabilidade e dúvida em relação aos elementos informativos apresentados, pois não se pode olvidar que um investigador particular será, sem dúvida, dotado de grande parcialidade, pois agirá conforme a vontade de contratante.
Por derradeiro, diante, infelizmente, de mais um anacrônico e contraproducente diploma legal, o qual se insere dentre as prescindíveis leis com baixa efetividade social criadas no contexto da conhecida inflação legislativa, não há como deixar de efetuar críticas ao incauto legislador, pois se possuía objetivo de implementar a investigação criminal, deveria atribuir maior autonomia e condições para a realização da atividade investigativa já efetuada pelas várias entidades públicas que detêm essa prerrogativa/atribuição e que inexoravelmente necessitam de investimentos para consecução dos seus fins, ao invés de legalizar uma figura privada, dispensando qualquer conhecimento técnico, que poderá também, por este motivo, causar transtornos e tumultuo à investigação oficial, além de colocar em risco a sigilosidade necessária ao andamento nesta fase da persecução
NOTAS
[1] Sir Arthur Ignatius Conan Doyle. Nascido em 28/05/1859 em Edimburgo, Escócia, foi um dos mais importantes escritores do Reino Unido, e “Sherlock Holmes“, sua obra prima, permanece o nome mais lembrado em termos de literatura de suspense e investigação. (Fonte: http://www.lem.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=60)
[2] MENSAGEM Nº 109, DE 11 DE ABRIL DE 2017. Razões do veto: “Os profissionais cuja atividade se regula por este projeto de lei exercem ofício de natureza privada, e não como presente no dispositivo, em linguagem própria de agentes públicos ou advogados. O uso da expressão, no rol de direitos do profissional, tem potencial de gerar confusão entre atividade pública e privada, com prejuízos a ambas e ao interesse público.”
[3] BRASIL. Lei 13.432, de 11 de Abril de 2017.
[4] BRASIL. Lei 13.432, de 11 de Abril de 2017.
[5] MENSAGEM Nº 109, DE 11 DE ABRIL DE 2017. Razões do veto: “Ao impor habilitação em curso específico e outros requisitos, o artigo impede o livre exercício da atividade por profissionais de outras áreas, bem como pelos atuais profissionais que não possuam essa habilitação, sem que se caracterize potencial dano social decorrente, violando o art. 5o, inciso XIII da Constituição. Além disso, fere o princípio da presunção de inocência, consagrado no inciso LVII do citado artigo constitucional.”
[6] BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei 3689 de 3 de outubro de 1941.