Passava das nove da noite quando Eduardo Moreira e seu fiel escudeiro Pereira chegaram ao Morro da Bina, em Biguaçu, para encontrar o pai de santo que a cada dia está mais famoso entre os políticos de Santa Catarina.
Ainda no carro, o motorista, que está com o ex-governador há tantos anos, não resistiu e perguntou:
– O senhor acredita nessas coisas? Achei que sendo um médico, uma pessoa estudada, não acreditava em espíritos que dão conselhos.
– Não acredito muito, – respondeu Eduardo Moreira – mas também não duvido. O mundo tem de tudo e quem já esteve aqui diz que ele tem a voz do Luiz Henrique e fala coisas que praticamente só ele diria.
– Eu não acredito – respondeu o motorista. – Isso deve ser alguém que sabe imitar a voz do Luiz Henrique e está tirando o dinheiro de vocês. No Governo mesmo tinha um monte de gente que imitava a voz dele.
– Como é aquela frase…- disse Eduardo – em bruxas não acredito pero que las hay, las hay. Já que estamos aqui, vamos ver o que acontece.
Na casa simples no Morro da Bina, Eduardo foi recebido por Pacácio que o mandou entrar e sentar na sala decorada com réplicas de Juarez Machado, quadros de São Jorge e Iemanjá e algumas imagens de santos, além de um preto velho que fica estrategicamente colocado ao lado da porta.
– É o senhor que incorpora o espírito do ex-governador Luiz Henrique? – perguntou Eduardo Moreira. – Soube que muitas pessoas o visitam, inclusive o atual governador.
O negro, que estava vestido todo de branco e usava uma máscara por causa da pandemia, falou demonstrando certo incômodo:
– Ajudo as pessoas através dos guias. Sou um cavalo, não sei quem incorporo e também não procuro saber quem me visita.
A dúvida só aumentava na cabeça de Eduardo Moreira. ‘Será que o Pereira está certo e esse cara não é um impostor?’, pensou. Mas já que estava ali, deixou as coisas acontecerem da forma mais natural possível.
Pacácio acendeu o charuto e deu umas duas baforadas. Foi questão de segundos para começar a falar com a voz de Luiz Henrique:
– Sabia que você viria.
– Algumas pessoas estão vindo falar com o senhor aqui – disse Eduardo Moreira. – A história está rolando no meio político. Mesmo duvidando um pouco eu não poderia ficar de fora.
Luiz Henrique riu e soltou uma pergunta provocando seu antigo vice:
– Já está trabalhando para ser vice do governador que vai acabar substituindo o Moisés?
Eduardo Moreira percebeu a provocação e também riu.
– Não – respondeu. – Chega desse negócio de ser vice. Já fui três vezes, assim como já fui duas vezes governador. Está de bom tamanho. Meu objetivo hoje é apenas ajudar o MDB a retomar o Governo do Estado.
Eduardo Moreira continuava muito desconfiado. Já estava querendo acreditar que Pacácio não passava de um impostor que aprendeu a imitar a voz de Luiz Henrique. Resolveu testá-lo:
– Sabe que as vezes fico pensando que a nossa história poderia ter sido bem diferente se lá em 2002 o senhor tivesse aceitado ser o vice na chapa de José Serra, como chegou a ser cogitado no MDB nacional e era a vontade do Fernando Henrique. Eu poderia ter sido o candidato ao Governo, quem sabe teria vencido o Amin e o senhor teria ficado fora do jogo, porque o Serra perdeu para o Lula.
– Quem te disse que o Serra perderia se eu fosse o vice dele? – interrompeu Luiz Henrique. – Tem mais, eu nunca seria candidato a vice-presidente. Aquilo foi apenas um balão de ensaio do Pedro Simon, colocando meu nome e de outros emedebistas, para tirar o Henrique Alves, que naquela época já era cheio de rolo. Foi denunciado pela revista Istoé por depositar mais de 15 milhões de dólares em paraísos fiscais. Mas a minha candidata a vice do Serra sempre foi a Rita Camata. Apenas o Gedel e o Temer queriam o Henrique Alves. Até o Serra preferia a Rita.
Mesmo depois dessa resposta, cheia de detalhes da época, Eduardo ainda duvidava que o espírito de Luiz Henrique falava com ele.
Em 2002, ano que ganhou o Governo do Estado pela primeira vez tendo Eduardo Moreira como vice, Luiz Henrique, que era prefeito de Joinville, chegou a ser cogitado para formar como vice na chapa do então candidato tucano José Serra, que acabou derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva.
– Pois é, não podemos fazer conjecturas sobre o que não aconteceu – disse Eduardo Moreira, rindo. – O que me traz aqui é saber a sua opinião sobre isso que está acontecendo no Estado, com o governador. Vai chegar um momento que preciso me posicionar.
Pacácio serviu um gole de cachaça e tomou virando de uma só vez o pequeno copo de massa de tomate. O uísque acabou e o negócio foi voltar para a purinha. Deu uma baforada no charuto e voltou a falar:
– Você sabe a minha opinião sobre isso. Sou um democrata. Nunca em toda a minha vida gostei de cassação, impeachment… Governador a gente coloca no voto e tira no voto. Mas vejo que o Moisés não se sustenta politicamente. Você deve saber, ele esteve aqui várias vezes. Perdi o meu tempo dando conselhos, mas acho que não colocou nada em prática. É muito devagar e pelo que ouço lá por cima nas conversas dos catarinenses a sua inexperiência está atrapalhando o Estado.
– Percebo que não tem volta, – disse Eduardo – só se for barrado na Justiça.
– Depois do tempo que perdi com o Moisés estava decidido a não dar mais conselhos a ninguém, mas já que veio aqui vou lhe dar a minha opinião. Fique fora. Quem vai decidir sobre isso são os deputados. Eles são os representantes da sociedade, legitimados através do voto. Eles decidirão e ficarão com as consequências, para o bem ou para o mal. A turma me mostrou as enquetes que os deputados estão fazendo na internet onde os votos são amplamente favoráveis a cassação do governador. Imagino que eles vão decidir por essas manifestações. Se for assim, é como disse para ele outro dia: caixão pro Billy.
O negro teve um acesso de tosse que fez Eduardo Moreira se recostar na cadeira. Quando se acalmou, tomou um longo gole de cachaça e falou novamente.
– Temos uma bolsa de apostas entre os catarinenses sobre a cassação do Moisés. Eu ainda não cravei a minha opinião. Pedro Ivo e Klenubing já cravaram que vai embora. Outro dia, o Walmor me mostrou um discurso da Ada desancando o governador e não apareceu ninguém para defendê-lo. Se for assim, sem força política, é melhor afastar para o Estado não parar. Santa Catarina não pode pagar essa conta por ter elegido alguém inexperiente. Já falei sobre isso, no fundo foi bom para a população parar de jogar todos os políticos na vala comum.
– Eu sei que o senhor recebe muita informação e já sabe o que vou dizer – falou Eduardo. – Não existe outra saída nesse momento. Não temos um Governo. Eu mesmo tentei ajudar, mas as coisas são difíceis. Precisamos de uma saída, de um plano para retomar o Estado depois que passar a pandemia e hoje não temos nada. Nem um plano para atacar a pandemia, nem para depois. Lamento muito, porque também sou um democrata, mas não vejo outro caminho nesse momento. Quanto aos deputados, não vou emitir juízo de valor, mas eles decidirão pelas manifestações da sociedade e hoje, a grande maioria, quer tirar o governador. Se o senhor ver as redes sociais…
– Não dou bola para redes sociais, mas meus informantes são bem atualizados – disse o Luiz Henrique. – Política é a arte de conversar. Você deve lembrar bem quanta saliva gastei para fazer aquelas composições de vice, para colocar você nas duas vezes. Mas é conversando que tudo se arruma. Se ele não conversa, não dialoga, então não está preparado para seguir no cargo. Mas deixa isso para os deputados.
– Ontem a Assembleia deu sequência no processo – disse Eduardo. – As redes sociais bombaram. Ninguém defende o homem. Ele se pronunciou na internet e ao mesmo tempo em que disse respeitar os deputados mirou no Julio Garcia como o responsável por seu possível afastamento.
– Alea jacta est – disse Luiz Henrique, citando a famosa frase de Cesar ao passar o Rubicão.
– Audaces fortuna juvat – respondeu Eduardo Moreira, repetindo o verso de Eneida, do poema escrito por Virgílio, no último século antes de Cristo.
– Não sabia do seu apreço pelo latim – disse Luiz Henrique, rindo.
– Fico pensando que tudo poderia ser diferente se tivéssemos conduzido o processo político de maneira inteligente – disse Eduardo Moreira. – Mas o Merísio atropelou tudo, o Colombo foi na dele e isso gerou o Moisés e toda essa crise que exige um posicionamento das lideranças políticas.
-Não vamos atrás de culpados – retrucou Luiz Henrique. – Pode me colocar a culpa, já que não fiquei vivo para acertar esse baralho. O que sobrou de articulação quando chegamos a 2010 e mantivemos o grupo com Pavan e PSDB, agregando o Colombo e companhia, faltou em 2018. Todos olharam apenas para a árvore e deixaram de contemplar a floresta. Daqui a pouco tem de novo, é só usar a lição.
Pacácio bebia e fumava. Eduardo estava impressionado como a voz e os gestos eram tão semelhantes ao de Luiz Henrique, que ele conhecia tão bem.
Por alguns instantes viajou no tempo. Lembrou da primeira campanha, em 2002, da falta de estrutura, da falta de apoio, das reuniões com pouquíssima gente, das traições e lembrou também da vitória que parecia impossível, contrariando até mesmo o que pensavam muitos companheiros.
A tosse do Pacácio fez voltar a realidade. Criado no catolicismo , participando desde criança da procissão de Santo Antonio dos Anjos, em Laguna, onde até hoje é convidado a carregar o pálio, Eduardo tem muita dificuldade para acreditar em espíritos, guias etc.
Mas estava ali diante de um negro todo de branco que fuma charuto, bebe cachaça e fala com a voz e os trejeitos de alguém pelo qual tem muito apreço e sente muita saudade.
Decidiu fazer mais um teste. Se Pacácio respondesse essa pergunta corretamente, sairia dali crente que realmente era Luiz Henrique que “descia” em Biguaçu para aconselhar os políticos.
Levantou da cadeira, se aproximou do negro e cochichou-lhe algumas palavras ao ouvido.
Quando se afastou, Pacácio olhou para ele e falou com sua voz normal, com sotaque nortista:
– É melhor o senhor se manter sentado.
Luiz Henrique já não estava mais presente.
Eduardo se levantou, meteu a mão no bolso e deixou uma contribuição polpuda para as obras de caridade do centro.
Já no carro, Pereira perguntou como foi a ‘sessão’. O ex-governador limitou-se a dizer:
– O homem é forte.
Pacácio guardou o dinheiro na gaveta e desligou a câmera do celular que estava escondido ao lado do dragão da estátua de São Jorge.
#conversasembiguaçu
Por Frutuoso Oliveira